sexta-feira, 15 de junho de 2012

Nós dizemos não (Eduardo Galeano)

Brilhante texto copiado (na íntegra) do "Blog do Bertolo", mais especificamente do post "Nós dizemos não (Eduardo Galeano)":


Em julho de 1988, em plena ditadura do general Pinochet, 300 intelectuais e artistas participaram de "Chile Cria", um encontro internacional de arte, ciência e cultura pela democracia no Chile. Este é o discurso de inauguração, que Eduardo Galeano pronunciou em nome de todos os convidados.
"Viemos de diversos países, e estamos aqui, reunidos à sombra generosa de Pablo Neruda: estamos aqui para acompanhar o povo do Chile, que diz não. Nós também dizemos não.
Dizemos não ao elogio do dinheiro e da morte. Dizemos não a um sistema que põe preço nas coisas e nas pessoas, onde quem mais tem é quem mais vale; dizemos não a um mundo que destina dois milhões de dólares por minuto para as armas de guerra enquanto mata, por minuto, 30 crianças, de fome ou doença curável. A bomba de nêutrons, que salva as coisas e aniquila as pessoas, é um perfeito símbolo de nosso tempo. Para o sistema assassino que converte em objetivos militares as estrelas da noite, o ser humano não é nada mais do que um fator de produção e consumo e objeto de uso; o tempo não é outra coisa que um recurso econômico; e o planeta inteiro, uma fonte de renda que deve render até a última gota de seu caldo. A pobreza é multiplicada para que a riqueza possa se multiplicar, e multiplicam-se as armas que garantem essa riqueza, riqueza de pouquinhos, e que mantém à margem a pobreza de todos os outros, e também se multiplica, enquanto isso, a solidão: nós dizemos não a um sistema que nega comida e nega amor, que condena muitos à fome de comida e muitos mais à fome de abraços.
Dizemos não à mentira. A cultura dominante, que os grandes meios de comunicação irradiam em escala universal, nos convida a confundir o mundo com um supermercado ou uma pista de corrida, onde o próximo pode ser uma mercadoria ou um competidor, mas jamais um irmão. Essa cultura mentirosa, que grotescamente especula com o amor humano para arrancar-lhe mais-valia, é na realidade a cultura do desvínculo: tem por deuses os ganhadores, os exitosos donos do dinheiro e do poder, e por heróis os "Rambos" fardados que cuidam de suas costas aplicando a Doutrina da Segurança Nacional. Pelo que diz e pelo que cala, a cultura dominante mente que a pobreza dos pobres não é um resultado da riqueza dos ricos, mas que é filha de ninguém, vinda no bojo de uma couve-flor ou da vontade de Deus, que fez os pobres preguiçosos e burros. Da mesma maneira, a humilhação de alguns homens provocada por outros não tem por que motivar a solidária indignação ou o escândalo, porque pertence à ordem natural das coisas: as ditaduras latino-americanas, por exemplo, fazem parte de nossa exuberante natureza e não do sistema imperialista de poder.
O desprezo transforma a história e mutila o mundo. Os poderosos fabricantes de opinião nos tratam como se não existíssemos, ou como se fôssemos sombras bobas. A herança colonial obriga o chamado Terceiro Mundo, habitado por pessoas de terceira categoria, a aceitar como própria a memória de seus vencedores, e obriga-o a compor a mentira alheia para usá-la como se fosse a própria verdade. Premiam a nossa obediência, castigam a nossa inteligência e desalentam a nossa energia criadora. Somos opinados, mas não podemos ser opinadores. Temos direito ao eco, não à voz, e os que mandam elogiam nosso talento de papagaios. Nós dizemos não: nós nos negamos a aceitar esta mediocridade como destino.
Nós dizemos não ao medo. Não ao medo de dizer, ao medo de fazer, ao medo de ser. O colonialismo visível proíbe dizer, proíbe fazer, proíbe ser. O colonialismo invisível, mais eficaz, nos convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser. O medo se disfarça em realismo: para que a realidade não seja irreal, dizem os ideólogos da impotência, a moral haverá de ser imoral. Frente à indignidade, frente à miséria, frente à mentira, não temos outro remédio além da resignação. Marcados pela fatalidade, nascemos preguiçosos, irresponsáveis, violentos, bobos, pitorescos e condenados à tutela militar. No máximo, podemos aspirar a converter-nos em prisioneiros de bom comportamento, capazes de pagar pontualmente os interesses de uma descomunal dívida externa contraída para financiar o luxo que nos humilha e o bastão que nos golpeia.
E neste estado de coisas, nós dizemos não à neutralidade da palavra humana. Dizemos não aos que nos convidam a lavar as mãos perante as cotidianas crucificações que ocorrem ao nosso redor. À aborrecida fascinação de uma arte fria, indiferente, contempladora do espelho, preferimos uma arte quente, que celebra a aventura humana no mundo e nela participa, uma arte irremediavelmente apaixonada e briguenta. Seria bela a beleza, se não fosse justa? Seria justa a justiça, se não fosse bela? Nós dizemos não ao divórcio entre a beleza e a justiça, porque dizemos sim ao seu abraço poderoso e fecundo.
Acontece que nós dizemos não, e dizendo não estamos dizendo sim.
Dizendo não às ditaduras, e não às ditaduras disfarçadas de democracias, nós estamos dizendo sim à luta pela democracia verdadeira, que a ninguém negará o pão e a palavra, e que será bela e perigosa como um poema de Neruda ou uma canção de Violeta Parra.
Dizendo não ao devastador império da cobiça, que tem seu centro no norte da América, nós estamos dizendo sim a outra América possível, que nascerá da mais antiga das tradições americanas, a tradição comunitária: a tradição comunitária que os índios do Chile defendem desesperadamente, de derrota em derrota, há cinco séculos.
Dizendo não à paz sem dignidade, nós estamos dizendo sim ao sagrado direito de rebelião contra a injustiça e contra sua longa história, longa como a história da resistência popular no longo mapa do Chile.
Dizendo não à liberdade do dinheiro, nós estamos dizendo sim à liberdade das pessoas: liberdade maltratada e machucada, mil vezes derrubada, como o Chile e, como o Chile, mil vezes erguida.
Dizendo não ao egoísmo suicida dos poderosos, que converteram o mundo em um vasto quartel, nós estamos dizendo sim à solidariedade humana, que nos dá sentido universal e confirma a força de fraternidades mais poderosas que todas as fronteiras com todos os seus guardiões: essa força que nos invade, como a música do Chile, e que como o vinho do Chile nos abraça.
E dizendo não ao triste encanto do desencanto, nós estamos dizendo sim à esperança, à esperança faminta e louca e amante e amada, como o Chile: a esperança obstinada como os filhos do Chile rompendo a noite."